EX-DEPUTADO CONFESSA QUE TCE FEZ “AUDITORIA FAKE” PARA ENCOBRIR DESVIO DE R$ 22 MILHÕES NA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA
Com uma dívida de R$ 25 milhões, o Poder Legislativo devia salários a servidores, empresas e factorings – modalidade de negócios que funciona como uma espécie de “agiotagem legalizada”.
11 Maio 2020
Os depoimentos de colaboração premiada do ex-presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT), José Riva, revelam um esquema que pode ter causado um prejuízo de pelo menos R$ 22 milhões aos cofres públicos de Mato Grosso (em valores não atualizados). Além de Riva, a fraude teria contado com o ex-governador Dante de Oliveira (PSDB, falecido em 2006), o ex-deputado estadual Humberto Bosaipo, e também conselheiros e auditores que ocuparam o Tribunal de Contas do Estado (TCE/MT).
Site teve acesso com exclusividade a trechos da colaboração premiada de José Riva, homologada pelo Poder Judiciário de Mato Grosso em fevereiro de 2020. De acordo com informações do documento, assim que chegou a ALMT no ano de 1995 para o seu primeiro mandato como deputado estadual, Riva conta que encontrou um órgão praticamente “insolvente”.
Com uma dívida de R$ 25 milhões, o Poder Legislativo devia salários a servidores, empresas e factorings – modalidade de negócios que funciona como uma espécie de “agiotagem legalizada”. Na ocasião, Riva ocupava o cargo de 1º Secretário da Mesa Diretora do órgão – abaixo apenas do presidente do Poder Legislativo. “Naquela oportunidade, logo no primeiro cargo diretivo da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso (‘ALMT’), o proponente tomou conhecimento de vultosa dívida, na ordem de aproximadamente R$ 25 milhões, junto a diversas empresas de factorings que extrapolavam de sua atribuição funcionando como verdadeiras instituições financeiras na concessão de empréstimos”, diz Riva em sua delação.
Essas dívidas em sua maioria, conforme o ex-presidente da ALMT revela, tinham como credor o bicheiro João Arcanjo Ribeiro, que detinha 70% de todo esse crédito. Os valores, como foi revelado na operação “Arca de Noé”, eram utilizados por deputados estaduais de Mato Grosso para bancar suas campanhas eleitorais.
A conta, porém, era paga por meio de empresas fantasmas que não prestavam serviços ao Poder Legislativo, ou seja, todo o dinheiro era transferido para Arcanjo, que ficava com os recursos públicos. “Insta asseverar que as empresas de factorings pertencentes ao senhor João Arcanjo Ribeiro, conhecido como “Comendador“, detinha cerca de 70% desse crédito, sendo que o restante da dívida possuía como credores outras empresas de fomento mercantil de menor expressão, bem como pessoas físicas que exerciam plenamente a atividade ilícita de agiotagem”, diz outro trecho da colaboração premiada.
Recentemente, e, porque não dizer, nos dias atuais, o Brasil vem conhecendo mais profundamente o sistema presidencialista de coalizão – onde o Legislativo possui grande poder e influência na sustentação política do próprio presidente da República. Em Mato Grosso, não é diferente e a dívida de R$ 25 milhões foi vista como uma oportunidade de “troca de favores” entre o governador recém eleito em 1998, Dante de Oliveira (PSDB), e o então deputado estadual Humberto Bosaipo.
José Riva narra em seu acordo de colaboração premiada que Dante e Bosaipo estavam numa espécie de “namoro político”. De um lado, o ex-governador precisava do apoio, e da influência, do parlamentar, e também de Riva, para ter uma “gestão tranquila”.
Do outro lado, havia uma dívida de R$ 25 milhões a ser paga com agiotas e bicheiros. O tempo passava e um “acordo” precisava ser “costurado”. “Nesse sentido, a fim de viabilizar a supracitada fraude, o proponente realizou, em conjunto com o deputado Humberto Bosaipo, uma reunião com o governador reeleito Dante de Oliveira, para assegurar, além do orçamento necessário ao funcionamento da Casa, recursos para o pagamento das dívidas contraídas junto ao Sr. João Arcanjo Ribeiro e outras empresas de factoring”, lembra José Riva.
O “acordo” que ficara acertado entre os chefes dos Poderes Executivo e Legislativo de Mato Grosso, num primeiro momento, consistia no repasse do Governo do Estado, além do orçamento da ALMT, de cerca de R$ 22 milhões. Parte deste valor (R$ 15,4 milhões) foi destinado ao Legislativo por meio de 22 pagamentos de R$ 700 mil cada e teve como objetivo liquidar a dívida com João Arcanjo Ribeiro. “O governador tinha todo o interesse de atender o deputado Bosaipo, e atender a mim também. Mas nesse momento o governador tinha uma espécie de ‘namoro político’ com o deputado Bosaipo e foi quando nós acertamos um acordo e o governador se comprometeu de nos repassar 22 parcelas de R$ 700 mil”, revelou o ex-presidente da ALMT.
José Riva conta, ainda, que o ex-governador Dante de Oliveira repassou valores que ultrapassaram a dívida com João Arcanjo Ribeiro. O montante “excedente” foi utilizado, inclusive, para sanar as contas do Poder Legislativo – inclusive com outras factorings.
As 22 parcelas transformaram-se em 22 notas promissórias entregues ao bicheiro. “Não são apenas R$ 15,4 milhões. As 22 promissórias de R$ 700 mil encontradas, não sei se na residência ou na empresa do Senhor João Arcanjo. [Os repasses] Foram um compromisso que eu e o deputado Bosaipo assinamos para liquidar de vez a conta que tinha com o João Arcanjo Ribeiro. Mas o governador Dante, na verdade, fica de nos repassar um valor maior, que era o suficiente não só para pagar as contas, mas pra pagar outras contas também que a Assembleia tinha menores, com outras factorys [sic] de menor importância”.
“AUDITORIA FAKE”
O suposto esquema narrado pelo ex-presidente da ALMT, José Riva, não seria completo se órgãos de controle do Poder Público também não participassem da fraude. O objetivo era dar ares de “legalidade” aos negócios ilícitos entre Dante de Oliveira, Humberto Bosaipo, e o próprio José Riva.
Assim, uma “auditoria”, proposta pelos próprios representantes do Poder Legislativo, que seria realizada pelo Tribuna de Contas do Estado (TCE/MT), foi a solução encontrada para tentar “despistar” eventuais suspeitas pelo esquema milionário. “Outra situação que eu gostaria de esclarecer é de que a auditoria feita pelo Tribunal de Contas do Estado foi feita em cima de uma amostragem. Ela era mais ou menos combinada com os auditores. Quando nós pedimos a realização da auditoria, os conselheiros já sabiam e nós nunca escondemos deles isso, que não tinha os procedimentos de licitação, de empenho, aliás, os procedimentos normais que deveriam ser feitos”, explica Riva em seu depoimento.
Riva analisa, inclusive, que os relatórios produzidos na auditoria não identificavam as fraudes perpetradas pelo grupo – apenas irregularidades “sanáveis”. Ele conta que os valores dos cheques emitidos para o pagamento da dívida milionária da ALMT era tão altos que inviabilizaria a própria possibilidade de uma auditoria por parte do Legislativo.
“Esses relatórios, na verdade, são relatórios fraudados que não detectam a ilegalidade, vício insanável. Detecta algum vício que é sanável, de menor gravidade, mas apenas em cima de procedimentos feitos previamente para serem auditados. Logicamente que se fosse auditar todos, naquele momento, a Mesa Diretora [da Assembleia Legislativa] sequer tinha condições de fazer todos os procedimentos dos cheques emitidos, que era realmente um montante muito elevado”, conta.
A colaboração premiada do ex-deputado estadual José Riva foi homologada no dia 20 de fevereiro de 2020 pelo desembargador do TJ-MT, Marcos Machado. Riva prometeu devolver cerca de R$ 93 milhões aos cofres públicos. Fonte: Folha max