SENADORA SIMONE TEBET INDICA QUE INDÍCIOS DE RACHADINHA PODE CRIAR CPI
De acordo com a parlamentar, indícios levantados pela comissão de inquérito foram bem além das omissões e erros cometidos pelo governo federal durante a pandemia. Trouxeram à tona uma quadrilha agindo na Saúde e possibilitaram outras investigações
08 Setembro 2021
Quando a CPI da Covid começou, em abril passado, tinha o objetivo de investigar as razões pelas quais o governo federal assumiu a postura negacionista diante da pandemia e, por causa disso, defendeu medicamentos ineficazes contra o novo coronavírus e se recusou a comprar as vacinas necessárias para evitar que a doença avançasse no país — que, ontem, totalizou 584.171 mortes e 20.913.578 casos.
Mas, à medida que a investigação avançou, constatou-se a existência de um grupo de corruptos dentro do Ministério da Saúde, que ainda pode gerar outras investigações, inclusive sobre a reedição do esquema das rachadinhas. A constatação é da senadora Simone Tebet (MDB-MS), integrante da bancada feminina da comissão de inquérito.
Para a parlamentar, outro resultado da CPI é que ela se aproxima muito de Jair Bolsonaro, tanto no que se refere à atuação dele durante a crise sanitária, quanto na questão da corrupção na compra de vacinas pelo ministério — cujo personagem-chave seria Marconny Faria, próximo do filho 04, Jair Renan, e que também mantém estreita relação com a advogada do presidente, Karina Kufa. Ela garante que o lobista comparecerá à comissão para ser inquirido.
Aliás, sobre os discursos de Bolsonaro, ontem, em Brasília e São Paulo, Simone mandou para ele um recado: “Resposta ao grito de hoje do presidente da República, recheado de insinuações, ameaças e ações constantes contra a ordem democrática e as liberdades públicas: o Congresso Nacional está vigilante e tem instrumento constitucional para conter qualquer tentativa de retrocesso. Afinal, como diria Ulysses, ‘traidor da Constituição é traidor da pátria, temos ódio à ditadura; ódio e nojo’”.
A seguir os principais trechos da entrevista.
Os próximos depoimentos servirão para desatar nós que ainda existem na investigação da CPI. Qual é a estratégia para as oitivas que restam?
Confrontar esses suspeitos com a verdade dos fatos, com aquilo que nós temos em mãos, com os elementos que não estão em sigilo e que podem ser confrontados. Nós temos vídeo, áudio, fotografia, documento, mensagens de WhatsApp, tudo isso confirmando. Pode ser que, dentro desse processo, esses depoimentos ainda tragam algum elemento que permita colocar mais cor nessa história. Mas o roteiro está claro e será devidamente contado no relatório da CPI.
O esquema da compra das vacinas pelo Ministério da Saúde parece simples. Na sua visão, há explicação para isso?
Está comprovado que estamos falando, para nossa sorte, de amadores. Muita gente indo com muita sede ao pote, todo mundo querendo levar vantagem e assediando personagens muito próximos ao presidente. A pergunta é: conseguiram assediar? Conseguiram seduzir os filhos do presidente? Essa é uma razão pela qual a CPI não pode parar agora. Nós temos, sim, condições de entregar o relatório para aquilo que foi o objeto principal. Mas, no meio do caminho, apareceram várias pedras, vários esquemas e a cada dia aparecem outros. Enquanto estamos fechando essas caixinhas, outras surgem. A CPI não pode terminar enquanto não se fechar o caso Covaxin com o FIB Bank, o caso do lobista Marconny Faria e agora saber o que essa advogada (Karina Kufa) estava fazendo no meio de toda a trama. Por isso que, em mais três semanas — acredito que não mais do que isso —, teremos condições de encerrar os trabalhos.
Existem ações que já podem ser determinadas pela CPI para estancar a corrupção?
No caso da Covaxin, nós vamos, por conta dela, abrir uma linha de investigação — controle interno e até externo. Serão linhas de investigação em relação ao mesmo modus operandi: o esquema é fraude à licitação com direcionamento, já combinando com terceiros, envolvendo planilha, tentativa de pagamento antecipado nesses contratos, com garantia que não é bancária, na qual aparece o FIB Bank. Esse nome vai ser uma figurinha carimbada. A todo momento vai começar a aparecer em alguns outros locais, inclusive em ministérios do governo federal. Paralelamente a isso e, muito mais grave, é que a CPI pode dar margem a uma outra CPI, por conta dos personagens — principalmente esse Marconny, ligado à advogada do presidente, que tem relação com o filho 04. Podemos estar diante também de novos esquemas de corrupção, não ligados à pandemia e relacionados a rachadinhas. Isso vai significar, provavelmente, que o Congresso abra outras CPIs, como a CPI da Rachadinha — pode envolver o senador (Flavio Bolsonaro, Republicanos-RJ) que manteria o esquema mesmo exercendo o atual cargo.
O que podemos esperar de mais importante na CPI a partir de agora?
Óbvio que, por conta de serem muitas frentes abertas, o próximo passo agora é começar a fechar essas caixinhas. Nós já temos os elementos probatórios, no que se refere a vídeos, mensagens, documentos e quebras de sigilo. É preciso apenas trazer os personagens indiciados, os principais atores, protagonistas desse processo para ouvi-los, e extrair daí algum elemento novo. Mas, mesmo sem esses personagens, nós já poderíamos dizer que a CPI tem toda a materialidade dos crimes cometidos no período da pandemia.
Na semana passada, a CPI não conseguiu ouvir o lobista Marconny Faria. Após entrada de pedido no Supremo Tribunal Federal (STF) para condução coercitiva, acionamento da polícia legislativa para buscá-lo, além de outras ações, ainda não se tem uma definição sobre a oitiva dele. Se não aparecer novamente, de que forma isso impacta no andamento das investigações?
O Marconny vem, não tem como ele escapar — a não ser que ele seja louco e queira fugir do Brasil, o que não vai acontecer. No caso dele, mesmo que não viesse, nós já temos várias conversas obtidas pela CPI, dadas pelo Ministério Público do Pará — lembrando que isso é mérito do líder do governo (senador Fernando Bezerra, MDB-PE), que pode ter dado um tiro no coração do próprio governo —, que há suspeita de que o Marconny estaria envolvido inclusive com o filho do presidente (Jair Renan, de quem seria próximo). Nós já temos, portanto, várias conversas, uma quantidade imensa de material. Marconny é aquele lobista que entrou no governo Bolsonaro; se ele existia antes, se ele era lobista antes, não interessa — interessa é que ele estava no esquema de ganhar dinheiro fácil envolvendo a compra de vacinas. Tem escuta telefônica, mensagens trocadas, documentos — nós não precisamos dele para linkar. A prova testemunhal — não esperamos muito dos depoentes ali. É mais uma oportunidade de ele falar, de repente até de se defender, porque pesa toda a sorte de denúncia e todos os elementos de prova. A princípio, há indício de que estava envolvido em tudo isso.
Quais novas revelações são possíveis de vir à tona nos próximos dias?
A CPI a gente sabe como começa, mas não sabe como termina. Na reta final, realmente se intensifica. Os termômetros estão mais aquecidos porque chegaram até nós denúncias gravíssimas, que nós também não esperávamos. Mas, mais do que isso, que o cerco se fecha em torno desses personagens. Então, acho que temos muitas coisas novas vindo. Inclusive, em relação à Covaxin, que foi a única que chegou a ter assinatura de contrato.
A CPI mostrou que a corrupção se mantém presente, por mais que mude o governo. Na sua opinião, de que forma se pode conter esse mal?
No início da CPI, estava muito claro para nós que havia uma visão totalmente equivocada de negacionismo pelo governo federal. Achávamos apenas ser uma visão deturpada de ver o mundo. No meio do processo, vimos que havia uma intenção. Aquilo que pensavam e diziam foi exatamente aquilo que levou a um agir equivocado. Então, pensamento, palavras e atos, todos conectados. Quando viram que a imunidade de rebanho por contaminação levaria o país a problemas muito mais sérios, alguns membros do governo e outros de fora, aproveitando a situação de caos pandêmico, passaram a atravessar o processo atrás de vacinas não necessariamente eficazes. Mas vacinas que concordassem com esse esquema de intermediários para superfaturamento. E aí se criou um grande esquema de propinoduto. Então, o que a CPI pode fazer como contribuição também é, a partir desses dados, analisarmos a possibilidade de melhorar não só o controle e a fiscalização internos dos Ministérios, mas, também, analisarmos com muito critério as alterações das leis de licitação e contratos.
Como a senhora espera que a CPI encerre os trabalhos? O que podemos esperar de contribuição desse processo para o país?
Gostaria de afirmar que os principais passos nós já demos. Na primeira fase, fizemos todos os levantamentos com provas testemunhais, documentais de áudios e vídeos. Nós temos a confirmação da omissão dolosa do governo federal na condução da pandemia, no atraso da compra de vacinas eficazes e eficientes, na omissão de um planejamento e coordenação nacional, que é de responsabilidade exclusiva da União. Portanto, isso significa que estavam conscientes de que impactaram definitivamente no número de mortos pela covid-19 no Brasil. Na segunda fase, ficou confirmado um esquema que não esperávamos: um verdadeiro propinoduto, que envolve um núcleo político e um militar, chegando próximo ao presidente. São crimes de corrupção contra a administração pública, em uma tentativa de superfaturar vacinas desconhecidas. Envolve pagamento antecipado em paraíso fiscal, sem ter a certeza de que receberíamos essas vacinas. Pior ainda, com a garantia de um avalista que se daria por um banco que não é banco, que tem um capital social em imóveis que não existem. Agora, estamos tentando descobrir quem são os sócios ocultos. Se não conseguirmos descobrir, obviamente, que a Justiça o fará. De qualquer forma, acho que temos algumas contribuições, para os próximos contratos e próximos governos. O esquema foi desbaratado. O modo de fazer, o modus operandi que vai ser investigado pelo Ministério Público, vai ficar claro. Essa forma de fazer corrupção, de superfaturar, de cometer crimes contra a administração pública, nenhum governo vai mais poder fazer, porque isso foi, obviamente, revelado ao país.
Comissão quer levantar conexões de advogada
Os defensores da advogada Karina Kufa vão tentar evitar que ela compareça à CPI da Covid, cuja aprovação para que compareça ao colegiado a fim de prestar depoimento foi aprovada no último dia 31. De autoria do vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), a ideia é ouvi-la sobre a rede de relacionamento que a liga ao lobista Marconny Faria — que deve passar por oitiva no próximo dia 15 —, ao filho 04 do presidente Jair Bolsonaro, Jair Renan, e à mãe dele, Ana Cristina Valle. Caso ela seja chamada na condição de testemunha, a tendência é de que seja impetrado no Supremo Tribunal Federal (STF) um mandado de segurança para que possa permanecer calada. Se for como investigada, seus defensores tentarão obter um habeas corpus.
A data da ida da advogada, porém, não está decidida. Paira a desconfiança entre os parlamentares de que Karina tenha montado um elo de contatos para aumentar o alcance da sua influência junto ao governo. Um dos indícios de que o relacionamento entre ela e Marconny era o de formar uma rede é o diálogo para a nomeação do defensor público da União — processo no qual atuou também Ana Cristina. O lobista atuava em favor de Leonardo Cardoso e, segundo a CPI, a advogada teria acionado o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), assim como a mãe do 04 fez em relação à Secretaria-Geral da Presidência, para tentar atender a Marconny.
“Você é top, hein! O negócio deu certo, sua ligação para o GSI, olha aí. O que está já, que quer ser reconduzido, não tem como porque ele é abortista até mandar parar, né? Esse aí já está fora. Vai sobrar o Léo, né? Vamos trabalhar para dar certo. Vai ser bom para a gente. Beijo no coração”, exultou Marconny em mensagem de voz à advogada. As gestões, porém, não funcionaram, pois o escolhido por Bolsonaro para o posto foi Daniel Macedo.
O nome de Karina surgiu no depoimento do ex-secretário da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), José Ricardo Santana, por conta de um evento que ela promoveu em casa, em maio do ano passado. Entre os convidados estava Marconny.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) protestou pela convocação de Karina. Segundo a entidade, trata-se de “inequívoca violação das prerrogativas da advocacia” e “tentativa inaceitável de criminalização da profissão”. Ressaltou, ainda, que o sigilo profissional legal do advogado não pode ser “relativizado ou colocado em segundo plano”, uma vez que se configura como uma “garantia em prol do cidadão, para assegurar o estado de direito, bem como para evitar que a defesa se transmude em acusação”. (TA)